quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Guardião

CAPÍTULO VI – GRILHÕES
Meu avô se aproxima da mesa, ele puxa Cassandra de perto de mim vociferando:
- Pare com isso sua puta! Temos muito que fazer para domar esse porra... O corpo deve ser remendado e preparado para que ele entre na Cova do Falso... A data está próxima...
Contrariada, Cassandra responde cheia de sarcasmo:
- Ora vovô, mas que mau você é... Não entende que estava com saudades do maninho?... Ele é tão atraente e robusto... Não me contive...
Fico espantado com a fala, meu avô com seu sorriso mau, me olha nos olhos:
- Tu não te lembras muito de tua infância, não é? Pois não foi o único que saiu da ilha para o continente rapaz... Tua irmã também não ficou aqui por longo tempo... Mas ela, ao contrário de você, esteve sob minha constante tutela. Ou acha que se tornou essa linda feiticeira por si só? Heim, seu bosta?
O velho continua sorrindo, sinto nojo dele. Maldito velho. Estou confuso e com medo. Toda a situação é bizarra demais. Parece tirada de um filme de horror gótico. Tento gritar, mas novamente, apenas um gorgolejo abafado se faz. Cassandra mais uma vez se aproxima, sinto medo e repulsa dela, tento me mover, mas nada acontece. Ela nota minha reação, com um sorriso malicioso, coloca sua boca rente a meu ouvido. Com uma voz, doce, mas incrivelmente lasciva, me diz:
- Não faça assim maninho, não está vendo que me magoa?... Adoro homens fortes e grandes, os sem vida são os que mais me atraem... Eu estava com tantas saudades de você, que não me contive... Além do mais, não importa se gostas ou não... Tu és meu agora... E farás tudo que eu quiser... Inclusive me satisfazer...
Com uma lambida em meu ouvido, que parece queimar minha carne, ela se afasta. A figura diminuta, segura o braço da moça, e a estapeia:
- Pare com tua putaria, sua vaca! Depois que pusermos o selo nele, pode fazer o que quiser com esse bosta. Sua necrófila de merda.
Cassandra responde que sim, apenas com um gesto de cabeça e sai da sala, o velho a segue. Ouço uma porta se abrindo ao longe. Longos minutos se passam até que o som se faz por uma vez mais e a estranha dupla entra.
Cassandra carrega vários embrulhos, o velho, traz um balde amassado, comido de ferrugem cheio de um líquido viscoso, semelhante a sangue, só que negro, como a mais terrível noite. Os pacotes são deixados sobre uma velha estante, o balde é posto sobre a mesa. A moça pega um avental carcomido em uma gaveta e o veste, o velho segue o exemplo e ao fim da operação se aproxima da mesa.
Os pacotes são abertos, e deles saem, agulhas, linhas, papeis antigos, potes cheios de vários líquidos coloridos e várias peças de metal. Uma faca se apresenta na mão do idoso. Sua mão entra em meu peito, tirando os órgãos destruídos, que são jogados ao chão. Entre os dentes, meu avô vocifera:
- Merda! Se esse cagão não tivesse provado a carne de uma Cria do Falso, seria muito mais fácil e limpo. Só iríamos precisar degolar esse porco gordo.
Mesmo ao ouvir os planos do velho, eu não esboço reação, nada importa. Tudo é muito louco e doentio para mim. A demência se insinua em minha vontade. Começo a sorrir.
A jovem percebe meu sorriso doentio e cutuca o velho. Ele estuda minha face por segundos e diz:
- Não meu netinho. Não vá cair no abismo. Logo irá entender seu papel nas coisas do mundo. E verás teu real valor. Seu gordinho fofinho de merda.
Os dois riem de mim. Sinto ódio dos dois. Tenho vontade de destruir seus corpos, me banquetear de suas carnes. Minha boca se move compulsivamente, em um movimento de morder. A dupla que ria, muda sua atitude jocosa, agora parecem sentir medo. Seus olhos se arregalam e os dois se entreolham. Isso me deixa feliz, muito feliz, mordo com mais força o ar. O velho coloca sua mão dentro do balde e puxa uma coisa parecida com um coração. Um coração negro, não humano é colocado dentro de mim, ao mesmo tempo, Cassandra, com uma agulha delicada, portadora de linha quase invisível, tal qual teia de aranha, costura-o no lugar do antigo. Outros órgãos são retirados do balde, mas não consigo perceber o que são. O mesmo processo de costura é feito para cada “órgão novo”. Quando todo o conteúdo se extingue. A jovem fala ao velho, sua voz é baixa, quase como um sussurro:
- Ele está começando a se tornar um ghoull, melhor colocarmos logo o selo.
O velho responde por entre os dentes:
- Vá a merda sua puta! Ensine ao Padre a rezar. Sei como anda a situação. Se colocarmos o selo agora com o corpo dele todo fudido, só vamos perder tempo e isso não nos sobra.
Uma agulha grossa é tomada pelo velho, que costura meu corpo com um fio brilhante, parece metálico, ele queima minha carne. Sinto o cheiro. Um cheiro doce e acre. Semelhante a carne de porco selvagem.
Ao terminar, Cassandra toma o lugar de meu avô, e usando os líquidos dos numerosos frascos, massageia a ferida recém fechada, sussurrando uma espécie de canção que não entendo.
Ao final do processo, os dois novamente saem da sala, mas dessa vez seus passos são mais rápidos e o tempo que demoram para voltar é muito menor.
Quando retornam, uma espécie de capacete de ferro é trazida pelo velho. Cassandra, pega os papéis e as peças que já estavam na sala e os espalham por sobre a mesa. Meu avô se aproxima e coloca o capacete de metal em mim. Sua voz se torna ainda mais sinistra ao dizer:
- Comece! Agora está quase tudo pronto para que ele entre na Cova.
Um pedaço de papel é colocado sobre meu peito. Nele, símbolos que só consigo associar a feitiçaria ou arqueologia. Penso já ter os visto em algum livro ou filme. Cassandra começa a cantar, sua voz é baixa e cadenciada. O velho se coloca em um canto da sala e lá fica entoando a mesma canção.
Após alguns minutos de cântico, o ar fica frio, pelo me parece que dessa forma, já que a respiração da dupla se mostra em pequenas nuvens que fogem de suas bocas e narizes. Uma luz fraca se faz no centro do papel, como uma chama. Ela é azul e parece dançar ao som da canção. Quando a chama está bem nítida, a canção para. A garota toma em suas mãos um pedaço de metal e o coloca sobre a chama, a peça rapidamente se aquece, mas não parece queimar Cassandra. Quando a peça está vermelha em brasa, ela é colocada sobre minha face. Urro de dor, dessa vez minha voz é clara e forte. Espantada, a minha maldita irmã, se afasta da mesa, mas a voz do velho faz com que ela volte a seu trabalho:
- Não pare idiota! Ele está se tornando um ghoull por completo! Ande com isso puta!
Um parafuso é tomado pelo jovem, ela fere sua mão com a ponta e o encaixa em um orifício na placa de metal que colocou em minha face há poucos instantes. Ela o empurra contra minha carne. Novo urro, mas dessa vez meu corpo se meche. Com medo nos olhos, Cassandra vocifera:
- Pelo pacto há muito firmado. Pelo bode com mil infantes. Eu te condeno aos grilhões!
O parafuso começa a girar velozmente em minha carne, entrando cada vez mais profundamente, sangue podre espirra da ferida graças ao rápido movimento. Urro novamente, a dor é angustiante. Ela tira meus sentidos. Novamente a escuridão toma meus olhos.
Não sei quanto tempo se passou. Quando a visão retorna, quando tomo a consciência novamente, meu avô está jogado no chão. Sangue escorre de sua boca. Ele ri. Um riso mau. Cassandra está encolhida em um canto da sala, segura em sua mão o pedaço de papel, a chama azul ainda se faz presente. Ela me olha com uma expressão de puro pavor. O velho então vocifera:
- Fale maldita! Termina teu papel!
Ainda cheia de pavor, a jovem grita em um tom de voz quase histérico:
- Eu te condeno aos grilhões!
Nova dor. Lancinante. Caio ao solo, sentido o parafuso se cravar cada vez mais em minha carne. Minha cabeça é quase esmagada pela peça de metal. Ela parece se fechar como uma noz. Não consigo abrir minha boca, o queixo está travado pela peça de metal. Não consigo enxergar, a visão está tampada pela peça. Não ouço, os ouvidos parecem terem ficado inúteis. Debato-me no chão de dor e frustração. Tento arrancar a peça. Então, de repente, a dor para. Sinto o metal se mover, a parte que tapava meus olhos e inibia minha audição se abrem. Vejo Cassandra e meu avô, em pé na minha frente. Os dois sorriem, parecem satisfeitos. A jovem se aproxima de mim e rente a minha orelha diz:
- Agora sweetie... Tu és realmente o Guardião da Cova... Tu és realmente todo meu...
O velho então vocifera:
- Não, seu. Nosso. Para tudo fazer.
Novamente o metal se fecha. Sinto-me dentro de uma cova profunda. Tudo some. Só o terror e a escuridão permanecem.

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